O novo toryismo - Herbert Spencer

Este é o primeiro capítulo da pequena compilação de textos de Herbert Spencer, The Man versus the State (1884).

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A maior parte daqueles que ora passam por Liberais são na verdade Tories de um novo tipo. Este é um paradoxo que pretendo justificar. Para que eu o justifique, devo primeiramente salientar o que originalmente eram esses dois partidos políticos; e eu devo então pedir que o leitor tenha paciência comigo enquanto eu o lembro de fatos com os quais ele é familiar, para que eu possa mostrar apropriadamente quais são as naturezas intrínsecas do Toryismo e do Liberalismo.

Antes mesmo que recebessem seus nomes, esses dois partidos políticos defendiam respectivamente dois tipos opostos de organização social, distinguíveis em termos gerais como militante e industrial — o primeiro defendia um régime de status, quase universal nos antigos tempos, e o segundo, o régime de contrato, que se generalizou nos tempos presentes, principalmente nas nações ocidentais, especialmente entre nós e os americanos. Se, em vez de usarmos a palavra "cooperação" num sentido limitado, nós a usarmos em seu sentido mais amplo, de maneira que denote as atividades combinadas dos cidadãos sob quaisquer sistemas de regulação, então esses dois tipos são definíveis como sistema de cooperação compulsória e sistema de cooperação voluntária. A estrutura típica do primeiro nós observamos num exército formado por recrutas que prestam serviço obrigatório, no qual os indivíduos, em seus vários postos, têm que obedecer a ordens sob pena de morte caso não as cumpram e receber comida, vestimentas e pagamento fixados arbitrariamente; a estrutura típica do segundo nós observamos num grupo de produtores ou distribuidores, que concordam voluntariamente em aceitar certos pagamentos em troca de serviços específicos e que podem à vontade, após notificação apropriada, abandonar a organização se não a apreciarem.

Durante a evolução social da Inglaterra, a distinção entre essas duas formas fundamentalmente opostas de cooperação surgiu gradualmente; mas muito antes que os nomes Tory e Whig viessem a ser usados, os partidos começaram a ser delineáveis, e suas conexões respectivamente com a militância e com o industrialismo foram vagamente percebidas. Sabe-se que, tanto aqui como em outros lugares, foram normalmente as populações das cidades, compostas por trabalhadores e comerciantes acostumados à cooperação contratual, que primeiro resistiram ao domínio coercitivo que caracteriza a cooperação de status. Inversamente, a cooperação de status, advinda das, e ajustada às, crônicas guerras, era apoiada nos distritos rurais, povoados originalmente por chefes militares e por seus dependentes, onde as idéias e tradições primitivas sobreviviam. Além disso, esse contraste de tendências políticas, percebido antes que os princípios dos Whigs e dos Tories fossem claramente distinguíveis, continuou a ser notado dali em diante. No período da Revolução, "enquanto as vilas e pequenas cidades eram monopolizadas pelos Tories, as maiores cidades, os distritos manufatureiros e os portos de comércio constituíam os redutos dos Whigs". E isso, apesar das exceções, por ainda existir essa relação geral, não precisa de provas.

Essas eram as naturezas dos dois partidos, pelo que indicavam suas origens. Observe, agora, quais eram suas naturezas a partir de suas primeiras doutrinas e ações. O Whiguismo começou como uma resistência a Carlos II e seus associados, que tentavam restabelecer os ilimitados poderes monárquicos. Os Whigs "consideravam a monarquia uma instituição civil, estabelecida pela nação para o bem de todos os seus membros", ao passo que, para os Tories, "o monarca havia sido delegado pelo paraíso". E essas doutrinas envolviam as crenças de que, para um, a sujeição do cidadão ao governante era condicional, e de que, para outro, era incondicional. Descrevendo os Whigs e os Tories no final do século XVII, cinqüenta anos antes de escrever sua Dissertation on Parties, Bolingbroke disse:
"O poder e a majestade do povo, um contrato original, a autoridade e a independência dos Parlamentos, liberdade, a resistência, a exclusão, a abdicação, a deposição; estas eram as idéias associadas, naquele tempo, a um Whig, e supunha-se por todos os Whigs que eram idéias incomunicáveis e incompatíveis com os princípios Tories.

"O direito divino, hereditário, irrevogável, a sucessão linear, a obediência passiva, a prerrogativa, a não-resistência, a escravidão, e às vezes o papado, eram idéias associadas, para muitas pessoas, a um Tory, e consideradas incomunicáveis e incompatíveis, da mesma maneira, com os princípios Whigs." — Dissertation on Parties, p. 5.
Se compararmos essas duas descrições, veremos que num partido havia um desejo de resistir e diminuir o poder coercitivo do governante sobre os súditos, e no outro, o de manter ou aumentar esse poder coercitivo. Essa diferença de objetivos — uma diferença que transcende em significado e importância todas as outras distinções políticas — era demonstrada em suas primeiras ações. Os princípios Whigs eram exemplificados pela Lei do Habeas Corpus e pela medida pela qual os juízes foram tornados independentes da Coroa; pela derrota da Lei de Não-Resistência,1 que propunha que os legisladores e oficiais fizessem compulsoriamente um juramento pelo qual eles não fariam, sob nenhuma circunstância, resistência ao rei através das armas; e, mais tarde, foram exemplificados pela Declaração de Direitos, concebida para proteger os súditos das agressões dos monarcas. Essas Leis tiveram a mesma natureza intrínseca. O princípio da cooperação compulsória através da vida social foi enfraquecido por elas, e o princípio da cooperação voluntária foi fortalecido. Que no período subseqüente a política do partido tenha tido a mesma tendência geral é mostrado por uma observação do Sr. Green a respeito do período de poder Whig, após a morte de Anne:
"Antes que os cinqüenta anos de seu governo tivessem passado, os ingleses haviam esquecido que era possível haver perseguições por diferenças religiosas, suprimir a liberdade de imprensa, interferir na administração da justiça ou governar sem um Parlamento." — Short History, p. 705.
E agora, atravessando o período de guerras que fechou o século passado e começou o presente, durante o qual a extensão da liberdade individual previamente conseguida foi perdida e o movimento retrógrado rumo a uma sociedade própria à militância foi mostrado por todos os tipos de medidas coercitivas, desde aquelas que tomavam à força as pessoas e propriedades dos cidadãos para propósitos de guerra até aquelas que suprimiam os encontros públicos e pretendiam silenciar a imprensa, recordemos as características gerais das mudanças executadas pelos Whigs ou Liberais depois que o restabelecimento da paz permitiu o renascimento do régime industrial e o retorno à sua estrutura apropriada. Sob a crescente influência Whig, houve a revogação das leis que proibiam as associação de artesãos e aquelas que interferiam na liberdade de viajar deles. Houve a medida pela qual, sob pressão Whig, se permitiu aos Dissidentes acreditar no que quisessem sem sofrer penalidades civis; e houve a medida Whig, executada pelos Tories sob compulsão, que permitiu aos Católicos professar sua religião sem perder parte de suas liberdades. A área de liberdade foi estendida pelas Leis que proibiram a compra de negros e a posse deles como cativos. O monopólio da Companhia das Índias Orientais foi abolido e o comércio com o oriente foi aberto a todos. A servidão política dos não-representados foi diminuída em área, tanto pela Lei de Reforma quanto pela Lei de Reforma Municipal;2 de forma que tanto em geral quanto localmente, a maioria estava menos sob a coerção da minoria. Os Dissidentes, não mais obrigados a se submeter à forma eclesiástica de casamento, ficaram livres para se casar através de um rito puramente civil. Mais tarde veio a diminuição e a remoção das limitações da compra de mercadorias estrangeiras e do emprego de embarcações e marinheiros estrangeiros; e mais posteriormente a remoção dos fardos sobre a imprensa, que foram impostos originalmente para limitar a difusão de opiniões. E sobre todas essas mudanças, é inquestionável que, executadas ou não pelos Liberais, estavam em conformidade com os princípios professados e defendidos pelos Liberais.

Porém, por que eu estou enumerando fatos tão conhecidos por todos? Simplesmente porque, como declarei no início, parece necessário lembrar a todos o que era o Liberalismo no passado, para que se possa perceber sua diferença em relação ao que se chama de Liberalismo no presente. Seria inescusável citar essas várias medidas com o objetivo de assinalar o caráter comum a elas, não ocorresse que nos dias presentes os homens esqueceram esse caráter. Eles não lembram que, de uma forma ou de outra, todas essas mudanças verdadeiramente Liberais diminuíram a cooperação compulsória na vida social e aumentaram a cooperação voluntária. Esqueceram que, numa direção ou noutra, elas diminuíram o alcance da autoridade governamental e aumentaram a área dentro da qual cada cidadão pode agir sem restrições. Perderam de vista o fato de que, no passado, o Liberalismo defendeu habitualmente a liberdade individual versus a coerção estatal.

E agora vem a pergunta: Como puderam os Liberais perder isso de vista? Como pôde o Liberalismo, sendo alçado mais e mais ao poder, tornar-se mais e mais coercitivo em sua legislação? Como foi que o Liberalismo, diretamente, por meio de suas próprias maiorias, ou indiretamente, através das maiorias de seus oponentes, cada vez mais adotar a política de ditar as ações dos cidadãos e, conseqüentemente, diminuir a área na qual as ações deles permanecem livres? Como podemos explicar essa crescente confusão de pensamento que o levou, em sua busca pelo que parece ser o bem público, a inverter o método pelo qual, em seus tempos primevos, ele alcançou o bem público?

Inexplicável como essa inconsciente mudança de política possa parecer à primeira vista, nós veremos que ela surgiu muito naturalmente. Dado o pensamento acrítico que normalmente é utilizado em questões políticas, sob as presentes condições, não se deveria esperar nada além do que de fato ocorreu. Para tornar isso claro, algumas explicações digressivas se fazem necessárias.

Das criaturas mais baixas às mais altas, a inteligência progride por meio de atos discriminatórios; e ela continua a progredir entre os homens, desde o mais ignorante até o mais culto. Classificar corretamente — colocar no mesmo grupo coisas que são essencialmente da mesma natureza e em outros grupos coisas que são de naturezas essencialmente diferentes — é condição essencial para uma correta orientação das ações. A partir de uma visão rudimentar, que nos alerta que um grande corpo opaco passa por perto (da mesma forma que olhos fechados virados para uma janela, percebendo a sombra causada por uma mão colocada na frente deles, nos diz que algo está se movendo à nossa frente), avança-se a uma visão desenvolvida, a qual, por meio de combinações de formas, cores e movimentos apreciados com exatidão identifica objetos a grandes distâncias como presas ou inimigos, e assim torna possível melhorar os ajustes de conduta que permitam a obtenção de comida ou a prevenção da morte. Essa progressiva percepção das diferenças e a conseqüente maior exatidão das classificações, que constitui um dos principais aspectos do aprimoramento da inteligência, é igualmente vista quando abandonamos uma visão física relativamente simples em favor da relativamente complexa visão intelectual — a visão que permite que coisas previamente agrupadas de acordo com características externas ou circunstâncias extrínsecas sejam reagrupadas em maior conformidade com suas estruturas ou naturezas intrínsecas. Uma visão intelectual pouco desenvolvida é tão indiscriminatória e errônea em suas classificações quanto uma visão física pouco desenvolvida. Observe, por exemplo, as primeiras organizações das plantas em grupos de árvores, arbustos e ervas: o tamanho, sendo a característica mais facilmente notável, era a base da distinção; e as combinações formadas por essa classificação unia várias plantas extremamente desiguais em suas naturezas e separava outras muito parecidas. Ou, ainda melhor, tome-se por exemplo a classificação popular que coloca juntos, sob o mesmo nome geral, peixes e mariscos, e sob o mesmo subnome, mariscos, coloca juntos crustáceos e moluscos; não, a que vai mais longe e considera como peixes os mamíferos cetáceos. Em parte por causa da similaridade de seus modos de vida aquáticos, em parte por conta da semelhança geral em seus sabores, criaturas de naturezas essenciais muito mais separadas que um peixe de uma ave são associadas na mesma classe e na mesma subclasse.

Agora, a verdade acima exemplificada vale também para as visões intelectuais que têm relação com coisas não prontamente apresentáveis aos sentidos, como, entre outras, instituições e medidas políticas. Pois quando pensamos sobre estas, os resultados de uma inadequada aptidão intelectual, ou de um inadequado desenvolvimento dela, ou de ambos, são classificações errôneas e conseqüentes conclusões incorretas. De fato, a probabilidade de erro aqui é muito maior, uma vez que as coisas com a qual o intelecto se ocupa não admitem exame da mesma simples maneira. Você não é capaz de tocar ou de ver uma instituição política: ela só pode ser conhecida por um esforço construtivo da imaginação. Você também não pode apreender através da percepção física uma medida política: isto requer, igualmente, um processo de representação mental pelo qual seus elementos são agrupados no pensamento e em que a natureza essencial da combinação é concebida. Aqui, portanto, ainda mais que nos casos acima mencionados, uma visão intelectual defeituosa é mostrada por agrupamentos formados por características externas ou por circunstâncias extrínsecas. A forma pela qual as instituições podem ser erroneamente classificadas é mostrada pela noção comum de que a República Romana era uma forma popular de governo. Observe as primeiras idéias dos revolucionários franceses, que objetivavam um estado ideal de liberdade, e você verá que as formas e ações políticas dos romanos foram seus modelos; e, mesmo agora, pode-se ver historiadores que interpretam as corrupções da República Romana como exemplos do que governos populares causam. Contudo, a semelhança entre as instituições romanas e instituições livres de fato era menor que a semelhança entre um tubarão e um golfinho — uma semelhança externa em conjunção com estruturas internas diametralmente diferentes. Pois o Governo Romano era o de uma pequena oligarquia dentro de uma oligarquia maior: os membros de cada uma eram autocratas absolutos. Uma sociedade na qual os relativamente poucos homens que possuíam o poder político, e que assim podiam se sentir livres, eram pequenos déspotas, que não possuíam somente escravos e dependentes, mas mantinham também seus filhos como cativos de forma não distante daquela pela qual tratavam seu gado, tem, por sua natureza intrínseca, maior parentesco com um ordinário despotismo do que com uma sociedade de cidadãos politicamente iguais.

Voltando-nos agora à nossa questão principal, nós podemos entender o tipo de confusão na qual o Liberalismo se perdeu e a origem das errôneas classificações das medidas políticas que o confundiram — classificações, como veremos, feitas a partir de características externas notáveis, não por suas naturezas internas. Pois quais, segundo o entendimento do povo e daqueles que as puseram em efeito, foram as mudanças feitas pelos Liberais no passado? Foram abolições das injustiças sofridas pelo povo ou por partes do povo: essa era a característica comum que ficou estampada nas mentes dos homens. Foram mitigações de males que eram sentidos direta ou indiretamente por grandes classes de cidadãos, como causas de miséria ou como impedimentos à felicidade. E uma vez que, nas mentes da maioria, um mal corrigido é equivalente à conquista de um bem, essas medidas passaram a ser vistas como benefícios positivos; e o bem estar da maioria veio a ser considerado tanto pelos estadistas como pelos eleitores Liberais como o objetivo do Liberalismo. Daí a confusão. A conquista de um bem público, sendo a característica conspícua comum às medidas Liberais desde que surgiram (então sempre alcançada através de um relaxamento de restrições), ocorreu que o bem público passou a ser visto pelos Liberais, não como um fim a ser ganho indiretamente por relaxamentos das restrições, mas como o fim a ser diretamente ganho. E, buscando ganhá-lo diretamente, eles passaram a usar métodos intrinsecamente opostos àqueles originalmente usados.

E agora, tendo visto como essa reversão das políticas surgiu (ou parcial reversão, eu deveria dizer, pois a recente Lei dos Sepultamentos e os esforços para remover todas as desigualdades religiosas restantes mostram a continuação das políticas originais em certas direções), prossigamos para examinar o alcance ao qual ela ocorreu em tempos recentes e o alcance ainda maior que o futuro a verá ocorrer caso as presentes idéias e sentimentos continuem a predominar.

Antes de prosseguir, devo dizer que nenhuma destas reflexões se aplica aos motivos que levaram, uma após a outra, às várias restrições que ocorreram. Esses motivos eram sem dúvida bons, em quase todos os casos. Deve-se admitir que as restrições, postas em prática por uma Lei de 1870, ao emprego de mulheres e crianças em empregos de pintura eram, em intenção, não menos filantrópicas que aquelas de Eduardo VI, que prescreviam um tempo mínimo que um trabalhador deveria conservar. Sem quaisquer dúvidas, a Lei da Oferta de Sementes (Irlanda) de 1880, que dava poder aos oficiais para comprar sementes para os arrendatários pobres e para se certificarem de que elas fossem plantadas apropriadamente, foi impulsionada por um desejo pelo bem-estar público não menor do que aquele que, em 1533, prescrevia o número de ovelhas que um arrendatário poderia manter, ou que aquele que, 1597, ordenava que fossem reconstruídos todos os criadouros de animais que estivessem em ruínas. Ninguém discordará que as várias medidas dos últimos anos tomadas para restringir a venda de bebidas tóxicas foram tomadas tendo em vista a moral pública da mesma forma que aquelas medidas que foram tomadas antigamente para combater os males da luxúria; como, por exemplo, no século XIV, quando a dieta e as vestimentas eram restritas. Todos devem ver que os éditos expedidos por Henrique VIII para impedir que as classes baixas jogassem dados, cartas, bowls, etc, não foram mais impelidos por um desejo pelo bem-estar do povo do que foram as Leis passadas recentemente para restringir o jogo.

Além disso, eu não pretendo aqui questionar a sabedoria destas interferências modernas, as quais os Conservadores e os Liberais competem na multiplicação, mais do que pretendo questionar a sabedoria daquelas antigas interferências a que as modernas tanto se assemelham. Nós não consideraremos agora se os planos modernos adotados para a preservação das vidas dos marinheiros são ou não são mais judiciosos que aquela radical medida escocesa, datada da metade do século XV, que proibia os capitães de deixar os portos durante o inverno. Aqui permanecerá em aberto a questão de se há uma melhor justificativa para dar aos fiscais sanitários poderes para examinar certos tipos de comida do que para a lei de Eduardo III segundo a qual os estalajadeiros em portos eram obrigados a revistar seus hóspedes para impedir a exportação de dinheiro ou prata. Nós assumiremos que não há menos sentido na cláusula da Lei dos Barcos de Canal, que proíbe um dono de hospedar gratuitamente os filhos dos barqueiros, do que havia nas Leis de Spitalfields, que, até 1824, para benefício dos artesãos, proibia os manufatureiros de consertar suas fábricas a mais de 10 milhas da Royal Exchange.3

Excluímos, portanto, estas questões de motivações filantrópicas e de sábio julgamento, assumindo-as as duas, e nos preocupamos aqui somente com a natureza compulsória das medidas que, objetivando o bem ou o mal, foram colocadas em vigor durante os períodos de ascendência Liberal.

Para exemplificar, comecemos em 1860, com a segunda administração de Lord Palmerston. Naquele ano, as restrições da Lei das Fábricas foram extendidas para os trabalhos de branqueamento e pintura em vermelho; foram estabelecidos fiscais de comidas e beidas, a serem pagos a partir de impostos locais; houve uma Lei que obrigava a inspeção os locais de produção de gás e estabelecia a qualidade do gás e limites de preço; houve uma Lei que, além de estabelecer maiores inspeções das minas, tornou ilegal o emprego de garotos de idade menor que doze anos que não fossem à escola e que não fossem capazes de ler e escrever. Em 1861, houve uma extensão das provisões compulsórias da Lei das Fábricas aos trabalhos de costura; foi dado poder aos pobres guardiães da lei de obrigar a vacinação; conselhos locais foram autorizados a estabelecer limites de preços para o aluguel de cavalos, pôneis, mulas, asnos e barcos; e certos conselhos locais ganharam poderes de taxação para trabalhos de drenagem rural e irrigação, e para a provisão de água para o gado. Em 1862, um Ato foi aprovado que restringia o emprego de mulheres e crianças em trabalhos de branqueamento ao ar livre; e uma Lei que tornava ilegal minas de carvão com somente uma abertura ou com aberturas separadas por um espaço menor que o especificado; também foi aprovado uma Lei que dava ao Conselho de Educação Médica o direito exclusivo de publicar uma Farmacopéia, o preço da qual seria estabelecido pelo Tesouro. Em 1863 aconteceu a extensão da vacinação compulsória à Escócia e à Irlanda; certos conselhos ganharam o poder de pedir emprestado dinheiro repagáveis de acordo com as taxas locais, e de empregar e pagar aqueles sem trabalho; as autoridades municipais obtiveram autorização para tomar posse de espaços ornamentais negligenciados e taxar os habitantes para a sustentação deles; foi aprovada a Lei de Regulação das Padarias, que, além de especificar uma idade mínima para os empregados ocupados entre certas horas, prescrevia caiagens periódicas, três camadas de pintura quando as panificadoras fossem pintadas, e pelo menos uma limpeza com água quente e sabão a cada seis meses; e também foi aprovada uma Lei que dava aos magistrados autoridade decisória quanto à salubridade ou insalubridade da comida levada até ele por um inspetor. Das legislações compulsórias de 1864. pode-se citar uma extensão da Lei das Fábricas a vários outros setores, incluindo regulações a limpeza e ventilação, e especificações de que os empregados não podem fazer suas refeições nos locais de trabalho, exceto aqueles que trabalham com o corte da madeira. Foi passada também a Lei dos Limpadores de Chaminé, uma Lei para regular ainda mais a venda de cerveja na Irlanda, uma Lei que obrigava o teste dos cabos e das âncoras, uma Lei que estendia a Lei das Obras Públicas de 1863, e a Lei das Doenças Contagiosas, que, por fim, deu à polícia, em certos locais especificados, poderes que, em relação a certas classes de mulheres, aboliram várias daquelas salvaguardas à liberdade individual estabelecidas no passado. O ano de 1865 testemunhou uma maior provisão para a recepção e alívio temporário dos viajantes às custas dos contribuintes; outra Lei de fechamento de bares; e uma Lei que estabelecia regulações compulsórias para o combate de incêndios em Londres. Então, sob o Ministério de Lord John Russell, em 1866, devemos mencionar uma Lei que regulava os currais, etc, na Escócia, dando às autoridades locais poderes para inspecionar as condições sanitárias e determinar o número de animais dentro do criadouro; uma Lei que forçava os cultivadores a rotular suas bolsas com o ano, local de cultivo e peso de suas mudas, e que dava à polícia poderes de busca; uma Lei que facilitava a construção de alojamentos na Irlanda e que estabelecia regulações para os ocupantes; a Lei de Saúde Pública, segundo a qual haveria um registro dos alojamentos e uma limitação do número de ocupantes, com inspeção e exigências de caiagem, etc; e a Lei das Bibliotecas Públicas, que dava poderes locais pelos quais uma maioria poderia taxar uma minoria para obter seus livros.

Passando agora às legislações sob o primeiro Ministério do Sr. Gladstone, nós temos, em 1869, o estabelecimento da telegrafia estatal, com a proibição da telegrafia através de qualquer outra agência; nós temos a delegação do poder de regular os transportes contratados ao Secretário de Estado; nós temos maiores e mais severas regulações para impedir a disseminação de doenças do gado, outra Lei de Regulação de Cervejarias, e a Lei de Preservação de Pássaros Marinhos (que assegurava a maior mortandade dos peixes). Em 1870, tivemos uma Lei que autorizava o Conselho de Obras Públicas a fazer obras em benefício dos donos de terras, para compra dos arrendatários; tivemos a Lei que permitia que o Departamento de Educação formasse conselhos escolares para comprar locais para a construção de escolas, que autorizava a provisão de escolas de graça, a serem sustentadas por impostos locais, e que permitia que os conselhos escolares pagassem os custos das crianças, para assim compelir os pais a enviar suas crianças para a escola, etc, etc; nós tivemos uma nova Lei de Fábricas e Oficinas, que colocava, entre outras, algumas restrições ao emprego de mulheres e crianças em trabalhos de fruti e piscicultura. Em 1871, nós tivemos uma emenda à Lei dos Navios Mercantes, que fazia com que os oficiais da Câmara de Comércio registrassem os carregamentos das embarcações que deixavam os portos; houve uma outra Lei de Fábricas e Oficinas, com maiores restrições; houve a Lei dos Mascates, que impunha penalidades para o trabalho de ambulante sem um certificado e limitava os locais dentro dos quais o certificado tinha validade, além de ter dado à polícia o poder de fazer buscas nas bolsas dos mascates; e também houveram mais medidas que obrigavam a vacinação. O ano de 1872, entre outras Leis, teve uma que tornava ilegal que babás cuidassem de mais de uma criança, a não ser numa casa registrada pelas autoridades, que prescreveriam o número de crianças a se receber; teve a Lei de Licenciamento, que proibia a venda de álcool para aqueles aparentemente com menos de dezesseis anos; e teve também outra Lei dos Navios Mercantes, que estabelecia uma inspeção anual dos navios de passageiros a vapor. Então, em 1873, foi aprovada a Lei de Crianças na Agricultura, que tornava ilegal que um fazendeiro empregasse uma criança que não tivesse um certificado de educação básica e o de certas freqüências em aula; foi aprovada também uma Lei dos Navios Mercantes que requeria que cada embarcação tivesse uma balança para mostrar o carregamento e que dava à Câmara de de Comércio o poder de estabelecer o número de barcos e de salva-vidas a serem carregados.

Vejamos agora as legislações Liberais sob o presente Ministério. Temos, em 1880, uma Lei que proíbe o uso de notas promissórias como pagamento pelo salário dos marinheiros; também vemos uma Lei que estabelece certas diretrizes para o carregamento seguro das cargas de grãos; temos uma Lei que aumenta a coerção local sobre os pais para compeli-los a enviar seus filhos à escola. Em 1881, foi aprovada uma legislação que proibia a pesca com rede de mexilhões e pequenos peixes, e uma interdição que tornava impossível comprar uma caneca de cerveja num domingo em Gales. Em 1882, a Câmara de Comércio recebeu autorização para conceder licenças de geração e venda de eletricidade, e os conselhos municipais puderam estabelecer impostos para a geração de luz elétrica; outras extorsões dos contribuintes foram autorizadas sob o pretexto de facilitar o acesso a banhos e a lavanderias; e as autoridades locais receberam o poder de fazer leis subsidiárias para assegurar o alojamento decente de pessoas que se ocupavam da colheita de frutos e vegetais. Das legislações de 1883 pode-se citar a Lei dos Trens Baratos, que, em parte através de impostos sobre a nação do valor de £400.000 por ano (em forma de taxas sobre os passageiros), em parte às custas dos proprietários de ferrovias, barateia ainda mais as viagens dos trabalhadores: a Câmara de Comércio, por meio dos Comissários de Ferrovias, tem o poder de assegurar acomodações suficientemente boas e freqüentes. Novamente, há a Lei que, sob pena de £10 em caso de descumprimento, proíbe o pagamento de salários aos trabalhadores em, ou dentro de, bares; há uma outra Lei de Fábricas e Oficinas, que obriga a inspeção de trabalhos que envolvem o uso de chumbo branco (para ver se eles provêem aventais, respiradores, banhos, bebidas aciduladas, etc) e de padarias, regulando os horários de emprego em ambos, e prescrevendo em detalhes alguns tipos de edifício para as últimas, que devem ser mantidas em condições satisfatórias aos inspetores.

Mas nós estamos longe de formar uma adequada concepção se nos focarmos somente na legilsação compulsória que de fato foi posta em vigor nos últimos anos. Nós precisamos olhar também para aquelas legislações que são defendidas, que ameaçam ser ainda mais extensas em alcance e severas em caráter. Recentemente tivemos um Ministro de Estado, um dos mais proeminentes Liberais, assim chamados, que desdenha dos planos do Governo para a melhoria dos distritos industriais, chamando-os de "remendos", e defende uma efetiva coerção sobre os proprietários de pequenas casas, sobre os donos de terras e sobre os contribuintes. Há outro Ministro de Estado que, discursando para seus eleitores, fala de passagem das ações das sociedades filantrópicas e das associações religiosas para ajudar os pobres, e diz que "a totalidade do povo deste país deve considerar esse trabalho como seu próprio trabalho"; isto é, alguma extensa medida governamental é necessária. De novo, temos um membro Radical do Parlamento que lidera um grande e poderoso grupo, que, com promessas cada vez maiores de sucesso, pretende compelir a sobriedade dando às maiorias locais poderes para limitar a liberdade de comércio de certas mercadorias. A regulação das horas de trabalho de certas classes, que tem se tornado cada vez mais generalizada graças às sucessivas extensões das Leis das Fábricas, provavelmente agora passará a ser ainda mais geral: uma medida será proposta para colocar sob regulação os empregados de todas as empresas. Há uma crescente demanda, também, de que a educação seja gratuita para todos. O pagamento às escolas está começando a ser denunciado como um mal: o Estado deve tomar para si tal fardo. Além disso, propõe-se por muitos que o Estado, considerado como um juiz indubitavelmente competente do que constitui a boa educação para os pobres, deve também assumir a tarefa de prescrever a boa educação para as classes médias — deve estampar nas crianças desta classe, também, o padrão estatal, em relação à bondade do qual não há mais dúvidas do que as que os Chineses tinham quando estabeleceram o seu. Há ainda os "subsídios às pesquisas", que têm sido pedidos com muito vigor ultimamente. O Governo fornece todo o ano a soma de £4.000 para esse propósito, a ser distribuída entre a Royal Society; e na ausência de indivíduos que tenham fortes motivos para resistir à pressão dos grupos interessados, que se sustentam por aqueles facilmente persuadidos, podemos esperar para breve o estabelecimento do "sacerdócio da ciência", defendido há muito tempo por Sir David Brewster. Novamente, propostas plausíveis são feitas de que deveria haver um sistema compulsório de previdência, pelo qual os homens, enquanto forem jovens, deverão ser forçados a poupar para quando estiverem incapacitados.

A enumeração destas medidas coercitivas, que se agiganta enquanto as enumeramos, não completa a conta. Nada além de alusões apressadas já haviam sido feitas à crescente compulsão que toma a forma de maiores impostos, locais e gerais. Em parte para cobrir os crescentes custos de execução destas medidas coercitivas, cada uma das quais requer funcionários adicionais, e em parte para custear as despesas das novas instituições públicas, tais como conselhos escolares, novas bibliotecas, museus públicos, banheiros e lavanderias, parques recreativos, etc, etc, os impostos locais são aumentados ano após ano; como a taxação geral é aumentada por novas liberações de recursos para a educação e para os departamentos de ciência e arte, etc. Cada uma dessas medidas envolve maior coerção — restringe ainda mais a liberdade do cidadão. Pois o discurso implícito que acompanha toda nova extorsão é o seguinte: "Até aqui vocês foram livres para gastar esta porção de seus ganhos da forma que lhes aprouvesse; a partir de hoje vocês não serão livres para gastá-la, mas a gastarão para o benefício geral." Assim, direta ou indiretamente, e na maior parte dos casos das duas formas simultaneamente, o cidadão está num estágio posterior do crescimento destas legislações compulsórias, privado de uma porção da liberdade que anteriormente tinha.


Eu não duvido que um membro do partido tenha lido a seção precedente com impaciência; querendo, como quer ele, apontar um imenso equívoco que, pensa ele, destrói a validade do argumento. "Você esquece", ele deseja dizer, "a diferença fundamental entre o poder que, no passado, estabeleceu aquelas restrições que o Liberalismo aboliu, e o poder que, no presente, estabelece as restrições que você chama de anti-Liberais. Você esquece que o primeiro era um poder irresponsável, o segundo é um poder responsável. Você esquece que, se o povo é regulado de várias formas pela presente legislação, o corpo que o regula foi criado por ele mesmo e tem autorização para seus atos.

Minha resposta é que eu não esqueci esta diferença, mas estou preparado para argumentar que a diferença é em grande medida irrelevante para a questão.

Em primeiro lugar, a verdadeira questão diz respeito a se as vidas dos cidadãos sofrem mais interferências do que sofriam antes, não da natureza da agência que interfere nas vidas deles. Tome-se um caso mais simples. Um membro de um sindicato trabalhista se juntou a outros no estabelecimento de uma organização de caráter puramente representativo. Por ela, ele é obrigado a entrar em greve se a maioria assim decidir; ele é proibido de aceitar qualquer trabalho a não ser que estejam em conformidade com as condições ditadas por eles; ele é impedido de lucrar através de sua habilidade ou energia superior de acordo com as restrições impostas sobre ele pelo sindicato. Ele não pode desobedecer sem abandonar os benefícios pecuniários da organização para que ele se uniu e sem trazer sobre si a perseguição, e talvez a violência, de seus companheiros. Ele é menos coagido porque teve voz na formação do corpo que exerce a coerção?

Em segundo lugar, se se objetar que a analogia é defeituosa, uma vez que o governo de uma nação, ao qual, por ele ser o protetor da vida e dos interesses nacionais, todos devem se submeter sob pena de desorganização social, tem uma autoridade muito maior sobre os cidadãos do que qualquer organização privada pode ter sobre seus membros, então a resposta é que, concedendo tal diferença, a resposta apresentada continua válida. Se os homens usam sua liberdade de forma a renunciarem a ela, isso os torna menos escravos? Se as pessoas, por meio de um plebiscito, elegerem um déspota para o governo, elas permanecerão livres porque o despotismo foi escolhido por elas mesmas? Deverão ser os éditos coercitivos impostos sobre o povo considerados legítimos por serem, em última análise, o resultado dos votos dados por ele próprio? Da mesma forma, pode-se argumentar que o africano oriental, que quebra uma lança na presença de outro, dessa forma tornando-se seu escravo, retém sua liberdade, porque escolheu livremente seu mestre.

Finalmente, se alguém, não sem marcas de irritação, imagino eu, repudiar este raciocínio e disser que não há paralelo entre a relação de um povo com um governo onde um irresponsável governante único foi permanentemente eleito e a relação em que um responsável corpo representativo é mantido e reeleito de tempos em tempos, então vem a resposta final — uma resposta totalmente heterodoxa —, que deixará a maioria atônita. Esta resposta é que esses milhares de atos limitatórios não são defensáveis com base no fato de que são obras de um governo escolhido pelo povo; pois a autoridade de um governo escolhido pelo povo não deve ser considerada mais ilimitada que a autoridade de um monarca; e como o verdadeiro Liberalismo no passado disputou a presunção de que o monarca possuía ilimitada autoridade, da mesma forma o verdadeiro Liberalismo do presente disputará a presunção da ilimitada autoridade parlamentar. Sobre isto, porém, falarei mais em instantes. Aqui eu apenas indico que esta é a resposta final.

Enquanto isso, é suficiente apontar para o fato de que, até recentemente, assim como antigamente, o verdadeiro Liberalismo se definia por seu movimento em direção à teoria da limitada autoridade parlamentar. Todas as abolições de restrições sobre crenças e cultos religiosos, sobre o comércio e o trânsito de mercadorias, sobre as combinações trabalhistas e a liberdade de movimento dos artesãos, sobre a publicação de opiniões, teológicas ou políticas, etc, etc, eram aceitações tácitas de que limitações são desejáveis. Da mesma forma que a remoção das leis que limitavam as religiões, das leis que restringiam esse ou aquele tipo de divertimento, das leis que compeliam o uso de certos métodos de agricultura, e muitas outras de natureza semelhante que haviam sido estabelecidas há muito tempo, era uma admissão de que o Estado não deveria interferir nessas questões; de forma que as remoções das limitações às atividades individuais de um tipo ou de outro, conquistadas pela última geração do Liberalismo, foram confissões práticas de que, nessas direções, também, a esfera da ação governamental deveria ser estreitada. E este reconhecimento da correção da restrição da ação governamental era uma preparação para restringi-lo em teoria. Uma das mais conhecidas verdades políticas é a de que, no curso da evolução social, o costume precede a lei; e que quando o costume já está bem estabelecido, ele se torna lei, recebendo endosso autoritativo e forma definida. Manifestamente, portanto, o Liberalismo do passado, por sua prática de limitação, preparava o caminho para o princípio da limitação.

Mas voltando dessas considerações mais gerais à questão central, eu enfatizo a resposta de que a liberdade de que um cidadão desfruta deve ser medida não pela natureza da estrutura governamental sob a qual ele vive, sendo ela representativa ou tendo outra forma, mas pela relativa escassez de limitações que ela impõe sobre ele; e que, tendo este cidadão participado na formação desta estrutura governamental ou não, suas ações não são da natureza apropriada ao Liberalismo se elas aumentam as restrições para além daquelas que são necessárias para a prevenção da agressão direta ou indireta aos outros cidadãos — necessárias, isto é, para a manutenção das liberdades dos cidadãos contra as invasões perpetradas pelos outros: limitações que são, portanto, negativamente coercitivas, não positivamente coercitivas.


Provavelmente, no entanto, o Liberal, e em maior medida a sub-espécie do Radical, que mais que quaisquer outros nestes últimos tempos parece ter a impressão de que, dado que ele tenha um fim virtuoso em vista, ele tem justificação para exercer toda a coerção sobre os homens de que for capaz, vai continuar a protestar. Sabendo que seu objetivo é um benefício para o povo de algum tipo, a ser obtido de alguma forma, e acreditando que o Tory é, pelo contrário, impelido por um interesse de classe e pelo desejo de manter seu poder de classe, ele vai considerar palpavelmente absurdo agrupá-los sob o mesmo gênero, e desdenhará do raciocínio usado para prová-lo.

Talvez uma analogia o ajude a perceber sua validade. Se, no longínquo Oriente, onde o governo pessoal é a única forma de governo conhecida, ele ouvisse dos habitantes uma história de uma luta pela qual eles depuseram um cruel e vicioso déspota e puseram em seu lugar um cujos atos provavam o desejo pelo bem deles — se, após ouvir às auto-congratulações das pessoas, ele dissesse que elas não haviam essencialmente mudado a natureza de seu governo, isso as deixaria bastante surpresas; e provavelmente ele teria dificuldades em fazê-las entender que a troca de um déspota malévolo por um déspota benevolente ainda fazia com que o governo fosse despótico. O mesmo ocorre com o Toryismo, corretamente concebido. Defendendo, como ele defende, a coerção do Estado versus a liberdade do indivíduo, o Toryismo permanece sendo o Toryismo, tanto estendendo sua coerção por motivos egoístas quanto altruístas. Tão certo quanto o fato de que o déspota ainda é um déspota, sendo suas motivações de poder arbitrário boas ou más, é o fato de que um Tory continua sendo um Tory, tendo motivos egoístas ou altruístas para usar o poder do Estado para restringir a liberdade do cidadão além do grau requerido para a manutenção das liberdades dos outros cidadãos. O Tory altruísta, da mesma maneira que o Tory egoísta, pertence ao gênero Tory, embora ele seja parte de uma nova espécie do gênero. E ambos contrastam completamente com o Liberal, como se o definia nos tempos em que os Liberais eram corretamente chamados dessa forma, e quando a definição de Liberal era "aquele que defende uma maior liberdade das restrições, especialmente das instituições políticas".

Assim, portanto, justifica-se o paradoxo com que comecei. Como vimos, o Toryismo e o Liberalismo originalmente surgiram, um da militância, o outro do industrialismo. Um defendia o régime de status, o outro o régime de contrato — um defendia o sistema de cooperação compulsória que acompanha a desigualdade legal de classes, e o outro pela cooperação voluntária que acompanha suas igualdades legais; e, além de toda dúvida, os primeiros atos dos dois partidos foram respectivamente pela manutenção das agências que efetivavam essa cooperação compulsória, e pelo enfraquecimento e pelas restrições a elas. A manifesta implicação disto é que, uma vez que ele esteve estendendo o sistema de compulsão, o que é atualmente chamado de Liberalismo é uma nova forma de Toryismo.

Quão verdadeiro isto é, nós veremos mais claramente ao analisarmos os fatos mais profundamente, o que faremos presentemente.

***

Nota: Vários jornais que comentaram este artigo quando ele foi originalmente publicado interpretaram os parágrafos acima como se eu pretendesse dizer que os Liberais e os Tories trocaram de lugar. Esta, contudo, de forma alguma é uma implicação do que eu disso. Uma nova espécie de Tory pode surgir sem que a original desapareça. Quando eu disse, na página 8, que em nossos dias "os Conservadores e os Liberais competem na multiplicação" de interferências, eu deixei clara a crença de que, embora os Liberais tenham sido atraídos pelas legislação coercitiva, os Conservadores não a abandonaram. Entretanto, é verdade que as leis feitas pelos Liberais estão aumentando tão extensamente as compulsões e restrições exercidas sobre os cidadãos, que entre os Conservadores que sofrem essa agressividade, há uma tendência crescente a resisti-la. Prova é fornecida pelo fato de que a "Liberty and Property Defence League", consistida principalmente de Conservadores, assumiu como lema "Individualismo versus Socialismo". De modo que se o presente curso de eventos continuar, pode ocorrer que os Tories de fato se tornem defensores das liberdades que os Liberais, em busca do que acreditam ser o bem-estar público, esmagam com os calcanhares.



Notas:

1 No original, "Non-Resisting Test Bill". [N.T.]

2 No original, "Reform Bill" e "Municipal Reform Bill". [N.T.]

3 Spitalfields é uma área de Londres e a Royal Exchange é um centro comercial da cidade. [N.T.]
Herbert Spencer (1820-1903) foi um filósofo liberal inglês. Contribuiu para várias áreas do conhecimento, como a sociologia, a filosofia política, a ética, a psicologia e a metafísica.