Ponto para a esquerda pró-livre mercado - Kevin Carson

Texto publicado em 29 de novembro de 2010 no C4SS.org.
Em seu blog no site da revista The Economist ("Inequality and Plutocracy: This Ain't No Banana Republic"1, Democracy in America, 19 de novembro), Will Wilkinson critica a caracterização da desigualdade de renda dos Estados Unidos como "predatória" e a definição dos americanos mais ricos como "plutocratas".

Após acertadamente afirmar que a riqueza não necessariamente é resultado de predações, Wilkinson prossegue na argumentação de que a maior parte da riqueza nos Estados Unidos de fato não foi conseguida através da violência e de que o país não é uma plutocracia. Nesse processo, ele comete os non sequiturs de dizer que a derrota de Meg Whitman2 na Califórnia e o próprio fato de que ela teve que candidatar-se ao governo estadual provam de alguma maneira que não vivemos numa plutocracia.

A premissa oculta é a de que "plutocracia" se traduz – num sentido tão grosseiro que remonta a Boss Hogg3 – em "república de bananas". Para Wilkinson, "plutocracia" se refere a condições em lugares como a América Latina, onde uma grande parte da riqueza de fato tem origens predatórias.

Contudo, um país pode ser uma plutocracia sem ser uma república de bananas como as que são comuns na América Latina. Efetivamente, um país caracterizado pelo que os neoconservadores chamam de "estado de direito", definido por muito profissionalismo e racionalidade weberiana, pode ser uma plutocracia muito mais eficiente que a latinoamericana.

Paul Goodman, ao descrever o ethos meritocrático centralizado quase 50 anos atrás em "People or Personnel", antecipou a ideia neoconservadora de "estado de direito" enquanto sistema no qual aqueles gerenciados por organizações centralizadas têm direitos especificados com devido processo dentro dessas organizações – em vez de terem independência delas. Creio que os georgistas tenham captado a base dessa distinção ao defender não uma igual justiça sob a lei, mas leis iguais.

Wilkinson negligencia a possibilidade de que a plutocracia, longe de estar relacionada com relações individuais com grupos de extermínio e generais, pode estar embutida nas próprias regras do jogo. E quanto mais aparentemente "neutras" as regras e a experiência dos tecnocratas que as administram, mais eficiente é a plutocracia em tungar suas vítimas sem qualquer reclamação evidente.

Wilkinson, então, prossegue a uma discussão acerca de quais mecanismos ele considera responsáveis pelos níveis maiores de desigualdade nos Estados Unidos nas décadas recentes. Tais mecanismos incluem bônus por habilidades excepcionais, mais mercados de "superastros" e outros em que o "vencedor leva tudo" e mudanças na governança corporativa. Ou seja, mudanças fundamentais das regras nos últimos trinta anos aumentaram drasticamente a desigualdade.

É, no mínimo, uma possibilidade que vale a pena considerar pensar que as regras em si são plutocráticas. Os níveis de desigualdade e de concentração de renda que já existiam 30 anos atrás refletiam mais de um século de união corporativista entre o estado e os grandes empresários. O que aconteceu, portanto, pode-se dizer, é que as elites plutocráticas decidiram que o sistema não era plutocrático o suficiente e mudaram as regras para produzir melhores resultados.

Wilkinson reconhece a preocupação de que o regime vigente nos Estados Unidos torna possível para as elites financeiras canalizarem dinheiro para si próprias através de meios políticos, mas continua a alegar que a maior parte dos bilionários americanos chegaram onde estão através da "produção de coisas úteis, ou da produção ou venda de coisas úteis mais eficientemente" – i.e., através de inovações.

Eu aditiria que isso é verdadeiro até certo ponto, da mesma forma que a economia soviética produzia bens com algum valor de uso e que inovavam em alguma medida. Porém, eu diria qu os bilionários atingiram sua riqueza através, principalmente, de restrições às condições sob as quais eles competiam no mercado para produzir coisas úteis. Tornaram-se enormemente ricos a partir da inovações precisamente por causa garantida pela rentabilidade garantida pelo estado a essas inovações.

No blog Cafe Hayek, Don Boudreaux estende o argumento de Wilkinson – e de forma muito menos sutil. O título de seu texto – "Bill Gates Has As Much Control Over My Life As I Have Over His"4 – diz tudo.

Boudreaux entusiasmadamente endossa a alegação de Wilkinson, que ele representa da seguinte maneira: "Os americanos ricos [...] são esmagadoramente empresários que servem à classe média e não predadores políticos, militares ou eclesiásticos que saqueiam os camponenses."

Deve-se admitir que Boudreaux pelo menos concedeu que é possível que algumas grandes fortunas foram adquiridas por meios políticos e não econômicos:
"Exceto na medida em que os americanos ricos têm sucesso em capturar a estrutura governamental para proteger suas riquezas e privilégios, como tarifas protecionistas, suas riquezas riquezas não são 'controladas'. A riqueza é criada somente através do serviço ao consumidor – isto é, tornando os outros mais ricos – e ela abandona aqueles que não são capazes de servi-lo."
Contudo, a referência a Bill Gates (dentre todas as pessoas) no título, à Apple e à Southwest Airlines no meio do texto – sem mencionar, ainda, o tom laudatório do texto como um todo – deixam claro que essas "exceções" devem ser consideradas como desvios pouco importantes e que ele considera a maior parte das grandes riquezas como legítimas e adquiridas no que se pode chamar de economia de mercado.

É verdade que eu posso ou não escolher comprar uma cópia o Microsoft Windows do Bill Gates – da mesma maneira que posso escolher comprar serviços postais de primeira classe da USPS5. Se eu escolher comprar uma cópia mais barata duplicada do Windows de alguém que não tenha o monopólio de copyright conferido a Gates ou mesmo um sistema operacionall que use códigos diferentes para executar funções patenteadas por Gates, eu vou ter problemas junto ao estado – da mesma forma que terei grandes problemas ao buscar serviços postais de primeira classe de um concorrente da USPS.

Então Bill Gates pode até "servir a classe média" ao prover valores de uso, da mesma forma que a velha economia soviética fazia. Mas Gates adquire a maior parte de seu dinheiro através do controle dos termos segundo os quais seus competidores são capazes de oferecer valores de uso.

Boudreaux negligencia completamente a extensão pelas quais as grandes fortunas resultam de rendimentos sobre direitos de propriedade artificiais e escassez artificial – sobre a restrição estatal do acesso a oportunidades naturais e controles dos termos sobre os quais se permite competir com quem já está estabelecido no mercado.

Ao perceber a enxurrada de comentários negativos, principalmente ao texto de Boudreaux, Wilkinson e o próprio Boudreaux – para crédito deles – voltaram atrás, de certa maneira.

Wilkinson, num texto a seguir ("Patterns versus rules: A caveat"6, Democracy in America, 23 de novembro), expressou algumas reservas sobre o sumário de Boudreaux de seu argumento:
"Tenho cada vez mais dúvidas a respeito de se as fortunas dos mais ricos americanos serem resultado evidente de criação de riquezas e não efeitos de regras institucionais que determinam vencedores e perdedores. A organização de nossa economia, política e instituições legais tem consequências distributivas complicadíssimas, e faz com que seja impossivelmente difícil especular o quanto de uma riqueza em particular deriva da criação de valor econômico verdadeiro e quanto deriva de subsídios implícitos numa ordem de mercado que desvie mesmo que suavemente de uma situação de competição perfeita como descrita nos livros."
Por exemplo, a respeito da Apple, Wilkinson diz: "toda a indústria de computadores existe e opera dentro de uma estrutura de leis de proprieade intelectual que não passa de um sistema de concessões e monopólios governamentais." Quanto à Southwest Airlines, Wilkinson argumenta que ela compete numa estrutura maior de regulamentações e subsídios governamentais ao transporte.

Assim, as corporações dominantes pode até competir entre si – mas num cenário muito restrito, com modelos de negócios definidos pelo governo, o qual impõe restrições competitivas que beneficiam principalmente as empresas estabelecidas.

Wilkinson conclui com uma tentativa de esclarecimento sobre seu texto anterior:
"Quando eu reclamo das lamentações acerca da desigualdade de renda nos Estados Unidos, eu não quero negar que as instituições americanas produzem 'predadores políticos, militares ou eclesiásticos que saqueiam os camponeses', ou afirmar que os padrões americanos de renda e riqueza refletem proceduralmente as regras de jogo ideais. Tenho certeza de que Boudreaux não quis dizer nada disso também."
Confrontado com este último desafio implícito, Boudreaux também recuou um pouco do absolutismo expressado em suas observações anteriores. Num texto posterior ("Production vs. Predation"7, Cafe Hayek, 23 de novembro, ele alegou concordar com "muito do que se disse na resposta de Will Wilkinson". Qual proporção de riqueza resulta da "produção de mercado para satisfazer demandas de consumidores" e o quanto advém de privilégios especiais é "uma questão empírica".

Esse recuo, entretanto, não foi muito grande. Sua "sensação" é que a resposta a essa questão empírica é que a "esmagadora maioria das riquezas pessoas dos Estados Unidos ainda é resultado de comportamentos criativos, empreendedores e arriscados tomados em mercados competitivos".

E mesmo que ele tenha feito uma concessão à importância dos privilégios, ele foi capaz de fazer essa observação: "a proporção das riquezas pessoas que hoje são resultados de privilégios governamentais injustificados é muito maior hoje do que antes dos anos 1930." Ao fazer isso, ele reitera um tema comum entre a direita libertária, de que, comparativamente, o período antes do New Deal foi algum tipo de era de ouro da economia laissez-faire. Ironicamente, essa posição é um espelho de muitos comentários de pessoas mais ignorantes em história do Kos e do HuffPo8, que caracterizam o New Deal como uma distopia de livre mercado.

É até difícil decidir como começar uma resposta para algo desse tipo. Há o cercamento de grandes parcelas de terra não-usadas empreendidas pelos barões coloniais (sem mencionar as gigantescas companhias de terras das quais nossos ilustres pais fundadores foram acionistas). Há o papel da escravidão e da servidão voluntária no controle dos trabalhadores no século 19 e as leis Jim Crow como ferramentas de exploração laboral. As concessões de terras para ferrovias, que provavelmente desequilibraram a economia em detrimento de distritos industriais locais e em prol da produção centralizada que se seguiu. As tarifas protecionistas, que eram tradicionalmente vistas como a "mãe dos cartéis". Não se esquecendo também das patentes (o controle, a troca e a combinação de patentes foram uma das principais maneiras de cartelização de muitas indústrias). Além disso tudo, há também o regime regulatório da era progressita, cujo principal propósito era tornar a economia segura para oligopólios estáveis (e.g., as restrições da FTC e do Clayton Act a práticas "anti-competitivas" como vender abaixo dos custos.

Em suma, a estrutura institucional do capitalismo de produção em massa dos Estados Unidos, como existe desde o começo da Grande Depressão, é quase comparável ao primeiro plano quinquenal de seus contemporâneos soviéticos. O New Deal foi só uma intervenção que buscava estabilizar um sistema que era instável porque já era corporativista em seu núcleo.

Modestas como possam parecer as concessões de Wilkinson e Boudreaux, estou convencido de que nada do tipo teria acontecido dez ou quinze anos atrás. Até então, comentários dessa natureza passariam completamente despercebidos pela imprensa libertária tradicional. O fato de que dois artigos foram sujeitos a esse escrutínio crítico e que os autores sentiram a necessidade de reavaliar suas posições reflete dois tipos de desenvolvimento.

Primeiro, o crescimento da cultura interligada e hiperlinkada da internet. Por causa dela, é possível que qualquer um que tenha um pouco de dinheiro tenha sua própria impressora e possa publicar respostas críticas a artigos de autores consagrados. Nesse processo, é possível pensar em linkar não somente ao artigo original mas a todas as evidências que forem usadas na resposta – o que costumava se chamar de "fisking", embora essa não seja uma palavra muito em voga atualmente. Isso significa que os comentários libertários não estão mais restritos por publicações de alto custo, fundações, think tanks ou doadores ricos.

Segundo, indica o advento de uma coesa e consciente esquerda de livre mercado. Esta comunidade se aglutinou em movimentos como a Alliance of the Libertarian Left e a comunidade de escritores do Center for a Stateless Society. Nós não apenas mencionamos de passagem a distinção entre "pró-mercado" e "pró-empresas", nós fazemos com que isso sejam o ponto central de nossa análise.

Como afirmou o prof. Roderick Long, diretor do Molinari Institute, organização que originou o C4SS, os libertários tradicionalmente tinham um tipo de problema de figura-fundo9. Eles, tendo uma afinidade cultural com a Old Right e o Partido Republicano após décadas de aliança anti-comunista e anti-New Deal, olharam para a economia corporativista existente e pensaram que o estatismo presente nela tratava-se de apenas uma fricção num sistema essencialmente de mercado.

Na esquerda de livre mercado, por outro lado, nós olhamos para a economia corporativista e a vemos como definida essencialmente pelo estatismo. Vemos como nossa tarefa defender o mercado livre e a liberdade humana como tal – e não defender a maior parte das grandes empresas atuais e concentrações de renda existente.

Nossa influência é crescente sobre os termos do debate.



Notas

1 [N.T.] "Desigualdade e plutocracia: Isso aqui não é uma república de bananas".

2 [N.T.] Meg Whitman é uma das mulheres mais ricas dos Estados Unidos, com ampla atuação política no país. Já serviu como executiva da Walt Disney, Dreamworks, Procter & Gamble, Hasbro, eBay e HP.

3 [N.T.] Boss Hogg era o comissário caricatural e vilão da série de TV americana The Dukes of Hazzard, exibida até 1985.

4 [N.T.] "Bill Gates tem tanto controle sobre a minha vida quanto eu tenho sobre a dele".

5 [N.T.] USPS é o serviço postal do governo americano.

6 [N.T.] "Padrões versus regras: Uma ressalva".

7 [N.T.] "Produção versus predação".

8 [N.T.] Refere-se aos comentários feitos nos sites Daily Kos e Huffington Post, tipicamente esquerdistas.

9 [N.T.] Clássico fenômeno estudado na psicologia gestalt.
Kevin Carson é associado sênior do Center for a Stateless Society (c4ss.org). Ele é um mutualista e anarco-individualista cujos trabalhos incluem Studies in Mutualist Political Economy, Organization Theory: A Libertarian Perspective, e The Homebrew Industrial Revolution: A Low-Overhead Manifesto, todos disponíveis online.

O louco sonho da ditadura liberal - Jesse Walker

Publicado no Reason.com em 17/07/2012.
A longeva, porém absolutamente insana ideia de autocratas que impõem a liberdade.

Em seu livro de 1926 Concerning Women, a escritora libertária Suzanne LaFollette fez algumas observações surpreendentemente simpáticas ao regime bolchevique na Rússia. Ela admitia brevemente os "supostos absusos a dissidentes políticos" praticados pelos soviéticos, mas concluía que "[o] abandono da ditadura e o estabelecimento ou não da justiça econômica na Rússia por parte do governo soviético não são realmente importantes". O que é de fato importante, pensava ela, é que "a ideia liberada pela Revolução Russa vá prevalecer sobre as forças combinadas do imperialismo americano e europeu".

Há tempos existe uma veia na tradição liberal clássica que sonha com uma ditadura temporária que fosse que servisse como degrau ou atalho para reformas. A ideia remonta ao economista francês Turgot e sua suposta fantasia de reconstruir seu país de cima para baixo: "Dê-me cinco anos de despotismo", alega-se que ele tenha dito, "e a França será livre" - e isso continuou com os intelectuais liberais que acreditaram em Napoleão. LaFollette não era a única autora pró-livre mercado com um fraco por ditaduras esquerdistas: até em 1970 podia-se ver o futuro presidente da Sociedade Mont Pélerin escrevendo amistosas palavras em relação a Lênin, Tito e Mao. Outros liberais clássicos, alarmados pelas realidades dos governos comunistas, ao contrário, acabaram apoiando governos autoritários de direita. Jorge Luis Borges, para citar um notório exemplo, apoiou o regime militar argentino que tomou o poder em 1976.

Há também os admiradores do General Augusto Pinochet, o autoritário comandante do Chile de 1973 até 1989. Um novo artigo no American Journal of Economics and Sociology, escrito por Andrew Farrant, Edward McPhail e Sebastian Berger explora as opiniões de F.A. Hayek a respeito da ditadura chilena. O artigo não é necessariamente a palavra final sobre o assunto - o estudioso das ideias de Hayek Bruce Caldwell diz discordar das interpretações dos autores em certos pontos -, mas faz o mais exaustivo trabalho que eu já vi ao procurar exatamente o que o intelectual austríaco falou a respeito do Chile. Farrant e cia descreditam alguns dos argumentos que já foram usados contra Hayek, mas deixam claro que ele combinava uma apreciação pelas políticas econômicas de Pinochet ("Do pouco que eu vi, não acho que seja exagero falar de um milagre chileno") com a crença de que uma ditadura temporária poderia ser salutar (Hayek disse que "preferiria sacrificar a democracia temporariamente - repetindo: temporariamente - em vez de ficar sem liberdade, mesmo que por pouco tempo"). No Chile de Pinochet, previu Hayek, "nós veremos a transformação de um governo ditatorial num governo liberal (...) e durante essa transição pode ser necessário manter alguns governos ditatoriais, não de maneira permanente, mas como arranjo temporário."

Pode não se tratar de um elogio a plenos pulmões, mas é uma maneira um tanto otimista demais para se falar de um estado que torturava seus adversários, censurava a imprensa e aprisionava e assassinava pessoas por suas opiniões políticas. Hayek poderia até ter preferido "sacrificar a democracia" se a alternativa era "não ter liberdade", mas Pinochet restringiu a liberdade de formas intoleráveis. O general não era nem mesmo consistente em seu comprometimento com a liberdade econômica: ele ajudou a causar uma recessão quando fixou o câmbio do peso; o histórico de seu regime é recheado de resgates, corrupção e outras formas de capitalismo corporativista; e ele regulamentou estritamente o trabalho. (Inicialmente, Pinochet baniu os sindicatos inteiramente, e depois de eles serem legalizados, ainda foram proibidas as greves por simpatia, os contratos voluntários do tipo closed-shop e restringiu quais questões poderiam ser tratadas em negociações sindicais com os empresários. Também havia uma tendência sua a trancafiar líderes trabalhistas.) Hayek não defendia essas interferências anti-liberais, mas não há qualquer sinal de que expressasse preocupação com elas.

Não é necessário dizer que Hayek não falava por todos os liberais clássicos. Não é difícil encontrar notórios indivíduos e instituições libertários que condenaram o governo Pinochet enquanto ele ainda estava no poder: Murray Rothbard o criticou furiosamente, por exemplo, e o Cato Institute publicou uma série de denúncias ferozes. E essa tradição continua até os dias de hoje. No entanto, muitos mitos acerca da ditadura ainda circulam, em sua maior parte entre conservadores, mas também entre alguns libertários. Periodicamente é possível ouvir a aleagação, por exemplo, de que o Pinochet foi um líder relutante que abdicou do poder por livre e espontânea vontade, um Cincinato que fez o que tinha que fazer para preparar o terreno para a liberdade. (George Reisman, por exemplo, diz o seguinte: "O General Pinochet foi, portanto, um dos mais extraordinários ditadores da história, um ditador que defendeu limites estritos ao poder do estado, que impôs esses limites e buscou mantê-los após voluntariamente abrir mão de sua ditadura.") Na verdade, quando Pinochet perdeu um plebiscito que esperava ganhar, o suposto Cincinato reagiu ordenando que as Forças Armadas estabelecessem a lei marcial. Sua ditadura terminou porque elas se recusaram a obedecê-lo.

Contudo a lenda persiste. E persiste em parte por causa da fantasia de uma ditadura temporária e benigna - um "ditador liberal", nas palavras de Hayek.

É certamente verdadeiro, como argumentou Hayek, que a liberdade e a democracia são diferentes. Uma intrusão em nossa liberdade não deixa de ser uma intrusão quando é endossada por uma maioria de eleitores. Porém, ditaduras tendem a ser esmagadoramente iliberais além de anti-democráticas; se você procurar por exemplos de ditadores liberais, não vai encontrar quase nenhum. Hayek cita Oliver Cromwell, que não era tão liberal assim, e Ludwig Erhard, que não era um ditador. Para se qualificar como autêntica ditadura liberal, um governo não pode ser eleito, mas também não pode ser repressivo; e para se qualificar a uma defesa liberal clássica, os governantes devem expandir as liberdades dos cidadãos. No último século, a única figura em que consigo pensar que chega perto de atingir esses parâmetros é John Cowperthwaite, o ex-secretário de finanças de Hong Kong; e sua capacidade de fazer o bem sem fazer tanto mal era possível somente por conta de incomuns circunstâncias históricas que eu não espero que aconteçam novamente.

A escassez de exemplos históricos não deveria surpreender. Como afirmam Farrant, McPhail e Berger em seu artigo, a ideia de Hayek de uma ditadura temporariamente liberal era inconsistente com seus outros argumentos:
A defesa de Hayek de uma ditadura transitória parece ignorar uma gama de problemas de escolha pública a respeito do auto-interesse dos atores políticos. Além disso, não está claro por que o argumento de Hayek acerca da suposta captura da burocracia planejadora por "maus" planejadoras não se aplicaria à máquina burocrática ditatorial - supostamente temporária - que seja criada pelo ditador hayekiano "liberal". De fato, os argumentos da escolha pública sugerem que qualquer potencial ditador iliberal que possa derrubar o ditador liberal de Hayek assumirá o controle de quaisquer mecanismos burocráticos que já estejam em funcionamento (a burocracia e as forças armadas) e que - assim que estiver no poder - nacionalizará grandes porções da economia para solidificar sua posição como ditador e aumentar sua capacidade de extrair tributos do setor privado. [...]

De fato, Hayek criticou H.D. Dickinson - um de seus oponentes no debate no período entre-guerras sobre o cálculo econômico sob o socialismo - por defender a suposta ideia inocente de uma ditadura socialista "transitória". [...] Como Hayek observou sarcasticamente, a adoção de uma ditadura socialista muito provavelmente culminaria num regime permanente parecido com o de Hitler ou Stálin e não na "imagem bonita e idílica do socialismo libertário" pintada por Dickinson.
Não é como se fosse necessária uma ditadura para expandir a liberdade. Dos países em que reformas liberais foram impostas de cima, as mais profundas mudanças foram realizadas não no ditatorial Chile, mas na democrática Nova Zelândia. E de forma mais importante, a liberalização pode ocorrer de baixo para cima em vez de o contrário. Paul Gregory e Kate Zhou apresentaram fortes argumentos para sustentar que uma das razões por que o abandono da economia planificada levou a resultados melhores na China do que na Rússia é que o primeiro país não impôs as reformas, mas as deixou acontecer: os camponeses conduziram o que equivalia a uma campanha de desobediência civil no campo, e a classe dominante ratificou as vitórias dos camponeses depois do ocorrido. Algo similar está acontecendo nos assentamentos informais do terceiro mundo, embora os residentes dessas localidades e seus mercados reais ocasionalmente entrem em conflito com os governos e suas "reformas de mercado".

Os liberais clássicos que defenderam ditaduras frequentemente passaram a se arrepender de seu entusiasmo. Borges finalmente assinou uma declaração de oposição ao hábito da Junta argentina de desaparecer com seus adversários. LaFollette acabou indo longe demais em sua posição pró-soviética e se tornou macartista. O sonho do ditador liberal, porém, persiste em alguns cantos do universo libertário. É um sonho que merece morrer.
Jesse Walker é editor sênior da revista Reason. Autor de livros como Rebels in the Air: An Alternative History of Radio in America, e The United States of Paranoia.